Vôo Noturno – Antoine de Saint-Exupéry

Vôo Noturno – Antoine de Saint-Exupéry

I

Na tarde dourada, já as
colinas, sob o avião, iam cavando o seu rasto de sombra. Os campos tomavam-se
luminosos, duma luminosidade perene: naquelas regiões, os campos não cessam de
espalhar o seu ouro, assim como no inverno não findam a sua apoteose de neve.

E o piloto Fabien,
conduzindo, do extremo sul para Buenos Aires, o correio da Patagônia,
reconhecia a aproximação da noite pelos mesmos sinais das águas de um porto:
aquela calina, as pregas ténues esboçadas por nuvens tranquilas. Entrava numa enseada vasta e feliz.

Perante tão profunda
calma, Fabien poderia também julgar-se em longo passeio, como um pastor. Os
pastores da Patagônia vão, sem pressa, dum rebanho a outro: ele ia duma cidade
a outra, era o pastor das pequenas cidades. De duas em duas horas encontrava
uma, aplacando a sede à beira dum rio ou ruminando no meio do seu campo.

Por vezes, após cem
quilômetros de charnecas mais despovoadas do que o mar, Fabien cruzava com uma
herdade perdida, que parecia arrastar consigo, numa onda de prados, uma carga
de vidas humanas; e então o piloto saudava esse navio com as asas.

"San
Julian à vista; aterramos dentro de dez
minutos."

O radiotelegrafista
transmitia a notícia a todos os postos da linha.

Num percurso de mil e
quinhentos quilómetros, do Estreito de Magalhães até Buenos Aires, sucediam-se
escalas semelhantes; mas esta abria-se sobre as fronteiras da noite, como na
África, à beira do mistério, se levanta a última aldeia conquistada.

O radiotelegrafista deu um papel
ao piloto:

"As tempestades são
tantas que os meus auscultadores estão cheios de descargas. Dormiremos >em San Julian?"

Fabien sorriu: o céu
estava calmo como um aquário e dali para frente todas as escalas assinalavam:
"Céu limpo, vento nulo". Respondeu :

"Continuaremos".

Mas o radiotelegrafista
pressentia que as tempestades se haviam escondido em algum lugar, como os vermes se
escondem nos frutos, a noite seria bela, mas estragada; repugnava-lhe entrar
naquela escuridão prestes a apodrecer.

Ao descer sobre San Julian com o motor au ralenti, Fabien sentiu-se cansado. Crescia
ao seu encontro tudo o que torna agradável a vida dos homens: as suas casas, os
seus pequenos cafés, as árvores das suas avenidas. Fabien sentia-se como um
conquistador após suas conquistas que, ao debruçar sobre as terras do seu
império, descobrisse a felicidade dos homens. Precisava depor as armas, sentiu
o seu próprio peso, o seu esgotamento, porque, às vezes, até as nossas misérias
nos fazem ricos. Precisava ainda sentir-se um homem simples, contemplando da
sua janela uma paisagem para sempre imutável. Teria aceito aquela minúscula aldeia:
após havermos escolhido, contentamo-nos com o acaso que governa a nossa
existência e podemos amá-lo. Limita-nos como o amor. Fabien desejaria viver
muito tempo neste lugar, desfrutando a sua pequena parcela de eternidade, pois
as cidadezinhas onde ficava uma hora e os seus jardins cercados por velhos
muros, que ele cruzava, pareciam-lhe eternos, porque perduravam fora dele. E a aldeia
crescia ao encontro da tripulação e abria-se-lhe. E
Fabien sonhava com amizades, com a suavidade das moças, com a intimidade criada
por toalhas brancas, com tudo o que lentamente o nosso coração vai conservando
para todo o sempre. As asas quase roçavam a aldeia, que corria, desvendando o
mistério dos seus jardins encerrados em muros que já não os protegiam. Mas,
tendo aterrado, Fabien compreendeu que vira apenas o lento arrastar dum punhado
de homens no meio das suas pedras. A esta aldeia, bastava-lhe a imobilidade
para garantir o segredo das suas paixões e para negar-lhe,
a ele, a sua suavidade: se a quisesse conquistar, teria de renunciar à ação.

Passados os dez minutos
previstos para a escala, Fabien teve de partir.

Voltou-se para San Julian: agora era apenas um
punhado de luzes, depois de estrelas, depois, até a poeira, que por último o
tentara, se dissipara.

"Já não vejo os mostradores: vou acender as
luzes."

Ligou, mas na
"atmosfera azulada as lâmpadas vermelhas da carlinga projetaram sobre as
agulhas uma luz ainda tão diluída que não conseguiu iluminá-las. Passou a mão
pela lâmpada: os dedos ficaram apenas róseos.

"Cedo demais."

Porém, como um fumo
escuro, a noite ia crescendo e já enchia os vales, confundindo-os com os
campos. E também já se alumiavam as aldeias, e as constelações que elas
formavam respondiam umas às outras. E ele, por sua vez, acendendo e apagando as
luzes de posição respondia às aldeias. A terra enchia-se de apelos luminosos,
cada lar ateando a sua estrela perante a noite imensa, tal como a luz dum farol
voltado para o mar. Tudo o que abrigava uma vida humana cintilava já. Fabien
maravilhava-se ao ver que desta vez a entrada na noite fazia lembrar a chegada,
lenta e bela, a uma enseada.

Enfiou a cabeça na carlinga. O rádio das agulhas
começava a luzir. O piloto verificou os números um por um e ficou satisfeito.
Sentia-se solidamente sentado no céu. As pontas dos seus dedos afloraram uma
longarina de aço e Fabien sentiu a vida pulsar no metal: o metal não vibrava,
vivia. Os quinhentos cavalos do motor faziam passar pela matéria rígida uma
corrente muito doce, que transformava o gelo em carne veludínea.
Uma vez mais, o piloto não sentia, ao voar, nem vertigem, nem embriaguez mas o
trabalhar misterioso duma carne com vida.

O seu mundo estava agora
recomposto e Fabien ajeitava-se para se instalar bem comodamente nele.

Tocou levemente no quadro
de distribuição elétrica e em seguida em, cada um dos
contatos, mexeu-se um pouco,
encostou-se mais confortavelmente e procurou a posição em que melhor pudesse
sentir o balançar das cinco toneladas de metal que a noite movediça soerguia.
Depois, às apalpadelas, procurou a lâmpada de socorro, empurrou-a para o seu
lugar, perdeu-a, voltou a encontrá-la, certificou-se que não escorregaria,
deixando-a de novo para bater levemente com a ponta dos dedos em cada alavanca
automaticamente, adestrando os dedos para um mundo de cego. E só então,
sentindo-os bem adestrados, decidiu-se a acender uma lâmpada, que veio mobilar
a carlinga de instrumentos exatos. E como se desse um
mergulho, passou a vigiar apenas, no painel, a entrada
da noite. Depois, visto que nada vacilava, vibrava ou tremia e que o
giroscópio, o altímetro e o regime do motor estavam em ordem, estirou-se um
pouco, apoiou a nuca no assento de couro e deixou-se levar por aquela profunda
meditação do vôo, em que se goza uma esperança
inexplicável.

E agora, no coração da noite,
como um vigia, Fabien descobre que a noite mostra o homem: aqueles apelos,
aquelas luzes, aquela inquietação. Esta simples estrela na escuridão: o
isolamento duma casa. Uma estrela que se apaga: é um lar que se fecha no seu
amor.

Ou no seu tédio. É uma
casa que cessa de acenar ao resto do mundo. Os camponeses, sentados à mesa
junto do candeeiro, mal sabem o que desejam: ignoram que, na imensa noite que
os contém, o seu desejo tem um tão grande alcance. Mas, vindo de mil
quilómetros de distância, Fabien descobre esse alcance e sente que vagas
profundas fazem subir e descer o avião que respira, após ter atravessado dez
tempestades, como países em guerra, separados por clareiras de luar, ao
atingir, uma a uma, embebido num sentimento de vitória, aquelas luzes. Os
camponeses crêem que a luz do seu lampião ilumina apenas a mesa humilde, mas a
oitenta quilômetros de distância, alguém já distinguiu o apêlo
dessa luz, como se aqueles homens a balouçassem, desesperados, numa ilha
deserta, em frente do mar.

II

Os três aviões postais da
Patagônia; do Chile e do Paraguai voltavam assim do sul, do oeste e
do norte para Buenos Aires, onde se aguardava sua carga para dar o sinal de
partida, por volta da meia-noite, ao avião da Europa.

Três pilotos perdidos na
noite, cada qual à ré de um nariz de avião maciço como uma bateira,
iam meditando no seu próprio voo e baixando lentamente dum céu de tormenta ou
de paz sobre a cidade imensa, qual estranhos camponeses descendo das suas
serras.

Rivière, responsável por
toda a rede, andava dum lado para outro, no campo de aterragem de Buenos Aires.
Mantinha-se silencioso, porque para ele, até chegarem os três aviões, a jornada
encontrava-se povoada de temores. Minuto a minuto, à medida que ia recebendo os
telegramas, Rivière tinha a consciência de arrancar um pedaço ao destino,
reduzindo a parcela de desconhecido e
trazendo as suas tripulações, arrancadas à noite, até à margem.

Um operário acercou-se de
Rivière para lhe comunicar uma mensagem do posto de rádio:

"O correio do Chile
anuncia que já vê as luzes de Buenos Aires".

— Está bem.

Rivière escutaria em
breve o ruído desse avião: a noite já devolvia um, como um mar cheio de fluxo e
refluxo e de mistérios entrega à praia o tesouro que longo tempo andou
balouçando. E mais tarde, o mesmo mar entregaria os outros dois.

Findaria então o dia. As
tripulações cansadas iriam dormir, substituídas por tripulações novas. Mas
Rivière não teria descanso: por sua vez, o correio da Europa iria enchê-lo de
inquietação. E seria sempre assim. Sempre. Pela primeira vez na vida, o velho
lutador verificava, com espanto, que se sentia cansado. A chegada dos aviões
não representaria nunca a vitória que termina uma guerra e abre uma era de paz
bem-aventurada. Para ele representaria, apenas e sempre, mais um passo, depois
de mil outros passos iguais. Teve a impressão de estar há muito levantando, com
todas as suas forças, um fardo enorme: um esforço sem descanso, nem esperança.
"Estou a envelhecer…" Ele
envelhecia, se de fato já não encontrasse unicamente na ação o
seu contentamento. Admirou-se de agitar problemas que para ele nunca tinham
existido. E, não obstante, chegavam-lhe, num melancólico murmúrio, todas as
coisas boas que sempre afastara de si: um oceano perdido. "Tudo isso está
então tão perto?…" Compreendeu que tinha feito recuar, pouco a pouco,
para a velhice o que torna doce a vida dum homem. Como se realmente se pudesse
ter tempo um dia, como se se ganhasse, ao cabo da
vida, aquela bem-aventurada paz que imaginamos. Mas a paz não existe. Talvez
não haja vitória. Não existe uma chegada definitiva de todos os correios.

Rivière parou em frente
de Leroux, um velho contramestre que estava entregue ao seu trabalho. Fazia já
também quarenta anos que Leroux trabalhava e o seu trabalho exigia-lhe todas as
forças. Quando, por volta das dez ou meia-noite, Leroux voltava para casa, não
era um mundo diferente que ia encontrar, esse abandono não representava uma
evasão. Rivière sorriu para aquele homem que levantava o rosto endurecido para
lhe indicar um eixo azulado. ‘"Estava bem apertado, mas consegui."
Rivière inclinou-se sobre o eixo. O prazer do ofício apossara-se de novo dele.
"É preciso dizer nas oficinas para deixarem essas peças mais folgadas." Tocou com os
dedos os sinais deixados pela
fricção dos metais, depois olhou de novo para Leroux. Perante aquelas rugas
severas, uma pergunta absurda subiu-lhe aos lábios. Até o fazia sorrir:

— Ouça, Leroux, você
dedicou muito tempo ao amor na sua vida?

— Oh!, o amor! O Sr. Diretor sabe. ..

— Você é como eu: nunca teve tempo.

— Lá muito, não. ..

Rivière observava o tom da sua voz, a fim de
perceber se a resposta era amarga: não o era. Perante a sua vida passada,
aquele homem mostrava-se tranquilamente satisfeito, como o carpinteiro que
exclama ao acabar de polir uma boa prancha: "Pronto, acabou-se".

"Pronto, pensou
Rivière, a minha vida está feita."

E afastando as ideias
tristes, provenientes do cansaço dirigiu-se ao hangar, pois já se ouvia roncar
o avião do Chile.

III

O ruído daquele motor
longínquo tornava–se cada vez mais denso. Chegava ao extremo. Acenderam-se as
luzes. As lâmpadas vermelhas das balizas descobriram um hangar, postes de T. S.
F., um terreno quadrado. Era a preparação duma festa.

"Ei-lo!"

O avião já fora apanhado
pelo facho de projetores. Brilhava como se fosse
novo. Mas, quando por fim parou em frente do hangar e enquanto os mecânicos e
os operários se apressavam para descarregar o correio, o piloto Pellerin não se
moveu.

"Então, o que é que
você espera para descer?"

Entregue a algum
misterioso trabalho, o piloto não se dignou responder. Provavelmente, escutava
ainda o ruído do voo que o trespassava. Abanava lentamente a cabeça e,
inclinado para a frente, manipulava não se sabia o quê. Por fim voltou-se para
os chefes e para os camaradas, e olhou-os, gravemente, como se fossem
propriedade sua. Parecia estar a contá-los, a medi-los, a pesá-los e pensava
que, sem dúvida, representavam o seu premio, assim como aquele hangar em festa,
aquele cimento firme e, mais longe, aquela cidade com o seu bulício, as suas
mulheres e o seu calor. Segurava aquele povo com suas mãos fortes, como
súditos, pois podia tocá-los, ouvi-los e insultá-los. Pensou primeiro em
insultá-los por estarem ali tão sossegados, sem receios pelas suas próprias
vidas, gozando o luar. Mas foi generoso:

"… Vão pagar-me uma bebida!"

E desceu.

Quis contar a sua viagem :

"Se soubessem…’"’

Achando, decerto, ter dito o suficiente, foi–se, para despir a jaqueta de couro.

No momento em que o carro
o transportava a Buenos Aires, em companhia dum inspetor soturno e de Rivière,
silencioso, Pellerin sentiu-se entristecer: é uma coisa
agradável vermo-nos livres de tudo e proferir umas boas injúrias ao pôr
de novo o pé em terra. Que
grande alegria! Mas depois, quando nos lembramos, duvidamos nem sabemos de quê.

A luta no meio do ciclone
era, ao menos, uma coisa real, uma coisa limpa ao contrário do semblante das
coisas, daquele semblante que elas tomam quando se julgam sós. Pellerin pensava :

"É tal qual uma
revolta: semblantes que empalidecem apenas um pouco, mas que se transformam
completamente".

Fez um esforço para se recordar.

Transpunha, tranquilo, a
cordilheira dos Andes. As neves hibernais pesavam sobre ela com toda a sua paz. As neves hibernais tinham imposto a paz
àquela massa, como os séculos a impõem aos castelos abandonados. Numa área de
duzentos quilômetros, nem um homem mais, nem um sopro de vida, nem um esforço.
Só arestas verticais, que as asas roçam a seis mil metros de altitude, e mantos
de pedra, cortados a pique, e uma extraordinária e imensa tranquilidade.

Foi nas imediações do pico Tupungato. . .

Refletiu. Foi realmente nessas
paragens que ele assistiu a um milagre.

Porque nos primeiros momentos não
viu nada, sentindo-se apenas contrafeito, como alguém que se julgasse só, já
não o estivesse e se sentisse vigiado. Viu-se, demasiado tarde e sem perceber
bem como, envolto numa onda de cólera. Era isso. Donde proviria ela?

Como percebia que a cólera
escorria das pedras e da neve? Pois nada parecia vir ao seu encontro, nenhuma
ameaçadora tempestade se vizinhava. Mas, naquele lugar, um mundo, penas um
pouco diferente, surgia do outro. Pellerin olhava, com um inexplicável aperto
no coração, aqueles cumes inocentes, aquelas arestas, aquelas cristas de neve,
apenas um pouco mais cinzentos e que, contudo, começavam a tomar vida — como se
fossem um povo.

Sem ter de lutar, ele
apertava as alavancas de comando com as mãos. Preparava-se qualquer coisa que
não compreendia. Os seus músculos retesavam-se, como os de um animal que se
prepara para o salto, mas era certo que perante ele só havia calma. Sim, calma,
mas impregnada dum estranho poder.

Depois tudo se tomou
cortante. As arestas, os cumes, tudo ficou cortante: sentia-os cortando, como
proas, o vento rijo. E, depois, pareceu-lhe que mudavam de rumo e derivavam à
sua volta, à maneira dos navios gigantes escolhendo a posição de combate. E
depois surgiu, misturada com o ar, uma poeira, uma poeira que subia, pairando
docemente como um véu ao longo das neves. Então, buscando uma saída em caso de
retirada forçada, Pellerin voltou-se para trás e estremeceu: por trás dele toda
a cordilheira parecia fermentar.

"Estou perdido."

Dum dos picos, em frente,
irrompeu a neve: um vulcão de neve. Depois o mesmo sucedeu num segundo pico, um
pouco à direita. E do mesmo modo, todos os picos, um após outro, se inflamaram,
dir-se-ia tocados sucessivamente por um invisível estafeta. Foi então que, aos
primeiros redemoinhos do ar, em volta do piloto as montanhas oscilaram.

A ação violenta deixa
poucos sinais: já se apagara a recordação dos violentos redemoinhos que o
tinham levado aos tombos. Lembrava-se apenas de ter-se
debatido, raivosamente, no meio daquelas chamas pardas.

Refletiu.

"O ciclone não tem
importância nenhuma. Saímos dele com vida. Mas antes dele! Aquele
nosso estranho encontro!"

Parecia-lhe reconhecer,
entre mil, um certo semblante e, contudo, já o esquecera.

 

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