Fernanda Zuccaro: num país partido ao meio, “quem perde são os brasileiros”

“O grande vitorioso destas eleições foi o movimento bolsonarista”, afirma Fernanda Zuccaro, consultora em comunicação política, numa altura em que Lula regressa à Presidência do Brasil.

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Fernanda Zuccaro, historiadora e consultora em comunicação política brasileira Nelson Garrido

Lula da Silva está de regresso à Presidência do Brasil, mas tem pela frente um percurso de obstáculos, sobretudo no Congresso, alerta Fernanda Zuccaro. Em entrevista ao PÚBLICO, a historiadora e consultora em comunicação política brasileira, a viver em Portugal desde 2017, garante ainda que, nestas eleições, quem “perdeu” foi o povo brasileiro e o Brasil, palco de uma “divisão de extremos personificados”.

Como vê a vitória do Lula? Era expectável?
Eu acredito que, dentro da história da redemocratização do Brasil, a partir das eleições de 1989, esta foi a eleição mais acirrada por auto-voto que nós tivemos.

É interessante observar a capacidade de crescimento de Jair Bolsonaro. No primeiro turno, Bolsonaro teve 51 milhões de votos e Lula teve cerca de 57 milhões. No segundo turno, até agora, Lula tem cerca de 60 milhões de votos e Bolsonaro tem 58 milhões — ou seja, teve uma capacidade de crescimento maior.

Apesar de proclamarem há algum tempo na imprensa que Lula já estava eleito, as pesquisas numéricas e qualitativas traduziam essa ambiguidade e dificuldade entre os dois candidatos.

Essa pequena margem é a menor margem de diferença que existe no segundo turno em todas as eleições no Brasil. Em 2014, tivemos Dilma Rousseff com 51,64% dos votos e Aécio Neves com 48,36%: foi uma margem pequena, mas a de hoje realmente bateu o recorde.

O bolsonarismo pode reclamar alguma vitória enquanto movimento?
O grande vitorioso destas eleições foi o movimento bolsonarista. A dimensão e proporção que ele ganhou... metade do país acredita nessa perspectiva política.

Do outro lado, tinha um ex-Presidente que governou durante oito anos, que reelegeu por duas campanhas a sua sucessora e bateu de frente com um candidato que viveu todas as dificuldades e que conseguiu alicerçar um movimento que tinha 50% de chances.

O grande vitorioso desta eleição é esse movimento — vitorioso e dificultoso porque quem perde nestas eleições, sem dúvida, são os brasileiros, na minha perspectiva.

Porquê?
É um país completamente partido ao meio, inflexível dos dois lados. Eu, como brasileira e profissional da área política, vejo uma situação triste, na verdade.

Mas vejo também, por outra perspectiva, que a eleição no Brasil é uma mostra da prática da democracia. Apesar de todos os contra-sensos de hoje, o sistema eleitoral brasileiro e a funcionalidade de tudo o que rege o processo eleitoral funciona bem e mostra-se eficiente e isso é importante para a nossa democracia.

Quais os obstáculos que Lula enfrenta agora?
A minha perspectiva é que há uma agravante que é que qualquer um dos dois que seja Presidente — neste caso, será o Lula — vai ter de lidar com uma coisa chamada Congresso.

Por mais que hoje os analistas políticos não usem o termo do professor Sérgio Abranches de “presidencialismo de coalizão”, ele está presente. Lula vai ter de governar com um Congresso com uma coisa chamada Centrão, que esteve no cerne do Mensalão [escândalo de compra de votos que ameaçou derrubar o governo de Lula da Silva em 2005], de todo o governo de Dilma e, inclusive, de onde vem o próprio Jair Bolsonaro nos seus 20 e poucos anos de deputado federal.

O sistema político brasileiro é muito difícil de perceber porque, por mais que nós tenhamos um Presidente no governo — nós não temos primeiro-ministro —, nada acontece se não tiver aprovação das duas casas legislativas: o Congresso (onde há 513 deputados federais) e o Senado (com 81 senadores).

O que quer dizer com “presidencialismo de coalizão"?
O Congresso foi onde Bolsonaro permaneceu durante quase 23 anos, sendo que ele foi deputado federal durante os dois mandatos do Presidente Lula e durante o primeiro e quase o segundo mandato da Presidente Dilma. E, junto dele, estavam todos os nomes envolvidos numa situação crítica do governo do Lula como o Roberto Jefferson, que foi um dos directores do Mensalão. Mas entra o governo do outro [Bolsonaro] e ele faz parte do governo do outro — isso é o presidencialismo de coalizão.

Portanto, não importa que a sua bandeira seja vermelha ou amarela… o que importa são os interesses que regem a prática. Numa hora, eles estão sentados à mesa com Lula e, na outra hora, estão sentados à mesa com Bolsonaro. Isso é muito estranho e ficou muito claro nesta última eleição.

Ter de lidar com essa parte vai ser uma dificuldade grande e, além disso, o Lula vai ter de lidar com o facto de grandes estados terem tido governadores eleitos apoiados e apoiantes do Bolsonaro — como Minas Gerais, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Amazonas.

O resultado destas eleições foi, portanto, um sinal claro da divisão e radicalização que o Brasil enfrenta?
Exactamente. Pior do que isso, é uma divisão de extremos personificados em duas figuras que se proclamam como salvadores da pátria. O estado de carência do povo brasileiro é tão grande que há necessidade de um ser mitológico salvador da pátria que, dos dois lados, se apresenta como ‘só eu posso salvar você e a sua situação’.

É muito deprimente, no século XXI, ainda ter uma eleição pautada na personificação e não no debate de propostas e políticas públicas reais.

Vou-me apropriar da definição de uma amiga minha: “Os debates não foram debates, foram deboche político”. Isso foi triste durante toda esta eleição: a falta de debate político e de ideias de duas figuras que se apresentaram como os salvadores de uma nação num estado completamente apocalíptico e de caos.

A minha análise é que o despreparo é o cerne dos dois candidatos.

Como é que o Brasil sai destas eleições?
O Brasil sai quebrado, fragmentado, dividido ao meio e num estado sem perspectiva de uma liderança política de ideias e de funcionalidade. Sai muito fragilizado de uma campanha vil e indigesta.

O processo eleitoral no Brasil é difícil, mas eu acho que esta campanha realmente bateu todos os recordes de dificuldade.

Sobra um povo que precisa de um mito e de uma figura para poder acreditar na sua capacidade, criar oportunidades, políticas públicas e para se poder desenvolver como deve ser. Fosse um ou fosse o outro [a vencer as eleições], o meu olhar sobre o Brasil é um olhar de agonia.

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